quarta-feira, 31 de março de 2010

Uma lei que é mais que um dedo na ferida

do CULTURA E MERCADO :: revista eletrônica :: blog :: rede :: podcast :: webtv = plataforma transmídia de Guilherme Varella

Finalmente o projeto que substitui a Lei Roaunet (Lei 8.313/91), a lei federal de incentivo à cultura, chegou ao Congresso. Pelas mãos do Ministério da Cultura, o Projeto de Lei (PL) 6.722/2010, que institui o Procultura, está na Casa desde o dia 19 de janeiro, depois de passar por consulta pública e por um quente debate, que teve faíscas, ranger de dentes e muito dedo na ferida.
Acompanhei de perto muitas das discussões públicas e do debate na mídia, que vem ocorrendo há mais de um ano. Nesse processo, ficou evidente o baile de posições, a coreografia dos atores, o desfile de argumentos alinhados.
Muitos dos que dele participaram eram contra colocar o dedo na ferida da Rouanet, ferida aberta durante 18 anos. Outros elucubravam e soltavam fogos e tocavam as trombetas da defesa do mercado. E a outros, poucos, restava o ranger de dentes, por saberem que o mecanismo que mais os beneficiava iria dar lugar a outro, de caráter mais democratizante, transparente e consoante com o interesse público.
Sou pelo dedo na ferida. Principalmente por acreditar que a atual Lei Roaunet não alcança todas as dimensões da cultura necessárias à abrangência que um instrumento de política pública, como esse, deve ter. Como lei de incentivo fiscal, voltada ao aquecimento do mercado e sob a ótica privada do que deve ser financiado com dinheiro público, a lei cumpre uma função importante na esfera econômica: movimenta dinheiro, profissionaliza o setor, gera dividendos e fomenta produções – apesar de concentrá-las em algumas poucas capitais de privilegiados estados.
O que não faz a lei Roaunet é o que agora propõe o Procultura: colocar em primeiro plano o interesse público. E, para isso, coloca-se como um instrumento compatível com outros mecanismos criados para o alcance das outras dimensões culturais nas políticas públicas – a dimensão simbólica e a cidadã -, como o Plano Nacional de Cultura, proposto pelo PL 6.835/06. Além disso, pensa na distribuição territorial dos recursos e em manifestações e segmentos artísticos secundarizados pela indústria cultural, devido à sua natureza pouco voltada ao grande público ou ao retorno financeiro – as manifestações populares, tradicionais, as artes de vanguarda, os saberes transmitidos pela cultura oral, etc.
Para tanto, o Procultura privilegia a dinâmica de fundos. Propõe o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, negligenciado por opção política e por falta de regulação em favor do Mecenato. Cria oito fundos setoriais, que podem distribuir de forma mais equânime os recursos públicos de acordo com as demandas específicas de cada área (música, dança, artes cênicas, circo, artes visuais, diversidade etc). E já se coloca como instrumento jurídico compatível com a dinâmica mais saudável de transferência de recursos públicos, que é a dinâmica de sistema, alinhando-se com a proposta de um Sistema Nacional de Cultura (SNC). A exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS), o SNC proporciona a articulação de políticas culturais nas três instâncias governamentais (federal, estadual e municipal), com execução orçamentária criteriosa e controlada pela sociedade, através dos conselhos.
Houve muito ranger de dentes nessa história. Mas por poucos maxilares: apenas 3% dos que ficam com 50% dos recursos do Mecenato. E muito choro sudestino, por correr o risco de ver os 80% dos recursos concentrados na região distribuídos Brasil afora
. Além dos naturais brados pela autoregulação do mercado cultural que, por si só, via departamentos de marketing e fundações culturais bancárias, teria o discernimento para saber em que segmento cultural “investir” – as aspas são apenas para lembrar do famigerado dinheiro público.
Fico com o fortalecimento do Estado, que, como ocorre em toda área essencial para o desenvolvimento do país, deve atuar positivamente, de maneira prestacional, através de políticas públicas e de legislações efetivas para embasá-las. Uma atuação baseada na cultura como direito fundamental e na garantia constitucional do pleno acesso à cultura por todos os cidadãos. Garantia que a Lei Rouanet não conseguiu prover. E em que, agora, o Procultura pode significar um avanço, sendo mais que um dedo na ferida, mas contribuindo para curar as mazelas deixadas no campo cultural.


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Rafael Vilela

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